domingo, 8 de agosto de 2010

Romance (Excerto # 23)

Cap. 35: FERRO EM BRASA

[ ... ] Raul não ficou surpreendido quando Teresa se ajoelhou à sua frente trazendo nas mãos um embrulho com cerca de setenta centímetros de comprimento. Ao abri-lo, deparou com uma caixa em couro que tinha na tampa o mesmo símbolo que Teresa exibia no piercing do umbigo: uma elipse longa, aberta nos extremos, em que se inscreviam as iniciais RM [ ... ]. A caixa era um estojo, e alojado nele encontrava-se um ferro de marcar gado: um belo objecto, com o cabo em raiz de nogueira, uma haste em aço inoxidável, e na ponta o mesmo design que estava gravado na tampa. Raul tirou o ferro do lugar: lá estava a elipse, lá estavam as iniciais do seu nome [ ... ]. Gravadas ao longo da haste, podiam ler-se as palavras Made in the USA by Unionized Labor. Um ferro de marcar gado, pensou Raul; e a sua única propriedade a que se podia chamar gado estava ali mesmo, ajoelhada à sua frente, perscrutando-lhe o rosto.

– Este ferro – disse Raul – és tu a dizer-me que não passas duma cabeça de gado.

– E acaso sou mais do que isso? – perguntou Teresa. – Acaso desejo ser mais do que isso?

Teresa, implacável Teresa. Lúcida, consistente, intransigente Teresa. Incapaz de um eufemismo.

[ ... ]

– Tens a certeza? – perguntou Raul. – É isto que queres?

– Há muito tempo que tenho a certeza, meu senhor.

– Não podia ser uma tatuagem? Seria permanente na mesma, e dar-me-ia um prazer igual.

– Perdoa, meu senhor – disse Teresa – mas desta vez não é do teu prazer que se trata.

Raul ergueu uma sobrancelha:

– Nem do teu, espero?!

– Não, meu senhor – disse Teresa. – Do meu, ainda menos. Posso contar-te uma coisa? Quando foi o incêndio no Luna Rossa… O Ettore e eu tínhamos combinado que no dia seguinte eu ia fazer uma tatuagem, um “T” de “Tedeschi”. Mas houve o incêndio, e tudo mudou. Anos mais tarde, quando começou a parecer-me possível voltar a ter um senhor, veio-me um pressentimento, uma certeza, sei lá, que se isso acontecesse ele me marcaria a fogo. Essa certeza manteve-se sempre, mas começou a estar cada vez menos presente no meu espírito… até ao incêndio do Red Moon, que trouxe tudo de volta. E agora esse senhor és tu. Falei em pressentimento, mas exprimi-me mal, não é bem isso: é como se essa marca já estivesse invisível no meu corpo desde o Luna Rossa e tivesse chegado agora a altura de a tornar visível. Uma tatuagem seria uma falsificação, um sucedâneo.

E para ti, pensou Raul, um sucedâneo é tão desprezível como um eufemismo…

– O teu domínio queima, meu senhor – prosseguiu Teresa. – Sempre senti isso. Um bocado de tinta aguada não me designaria como coisa tua. Mas uma marca a fogo no meu corpo transformar-nos-ia [ ... ].

Mais um risco a correr, portanto, pensou Raul. Todas as fichas numa jogada. Porque não me pedes antes que arrisque a minha vida? Arriscá-la-ia por ti, de bom grado.

– Já pensaste na dor que vais sofrer? – perguntou.

– Há meses que penso nela, meu dono, e morro de medo. Mas o medo não é importante.

– Vai ser muito, muito pior que qualquer chicote. Estás preparada para isto?

– Não, meu senhor, mas estarei na altura. [ ... ]. Para mim, ser marcada pela tua própria mão seria a maior felicidade do mundo. Quando Manfredi mandou marcar a Chiara…

– A Chiara está marcada a fogo?

– Está, sim, meu senhor. Foi marcada nos Estados Unidos, o Avvocato não quis ser ele a fazê-lo…

Nos dias que se seguiram, Raul teve que decidir o que faria. Marcar uma escrava com um ferro em brasa era uma ideia que sempre se tinha situado, para ele, no campo da fantasia. Neste campo, dava-lhe prazer. Mas agora era chamado a considerar essa ideia como uma possibilidade real [ ... ]. Agora que tinha que decidir, tinha que se interrogar. A questão menos importante era se a perspectiva lhe dava prazer: admitia que sim, mas era um prazer sem o qual podia bem passar, e enormemente desproporcional à dor de Teresa. Traria este acto algum benefício para Teresa, para ele próprio, ou para os dois? Se o trouxesse, seria enorme; mas também o custo seria enorme, se o acto se revelasse desastroso. Tinha ele a coragem necessária? [ ... ] O processo era seguro? Estava sujeito a consequências indesejadas? Que precauções exigia? Como se executava na prática? Raul ignorava isto tudo, e não ia marcar Teresa a ferro quente sem estar completamente seguro do que fazia.

[ ... ].

Ao mesmo tempo que se entregava a esta introspecção, Raul procurava obter toda a informação objectiva que o pudesse ajudar. O primeiro elemento desta informação, encontrou-o logo na embalagem do ferro: uma folha de instruções pormenorizada, que contemplava não só a utilização do instrumento em animais, mas também em seres humanos. Na Internet, a informação que encontrou era incompleta e contraditória: não podia fiar-se nela. Não podia perguntar a um médico, por razões óbvias. [ ... ]. Telefonou a Manfredi, que confirmou a importância que este ritual teria para Teresa. Compreendia as dúvidas de Raul, simpatizava com elas, mas só podia ajudar na vertente prática: queria Raul que ele, Manfredi, lhe aparecesse no Porto acompanhado por um especialista de confiança? Raul respondeu que sim, mas que se reservava, até ao último minuto, a escolha de abortar a operação.

– Of course – respondeu Manfredi [ ... ].


Entretanto, a vida prosseguia. Menos de uma semana depois de regressar do Brasil, Teresa voltou às aulas de pompoar. Muitas colegas suas estavam já adiantadas nos exercícios com vibrador, mas Teresa voltou atrás por recomendação da professora, e na primeira aula fez exercícios sem instrumentos e com bolas ben-wa. Achou esta precaução exagerada: nessa tarde, quando chegou a casa, introduziu na vagina o vibrador ligado. Para sua surpresa, sentiu um pouco de dor, devida talvez ainda à colocação dos piercings; mas aquele outro sofrimento que tanto se parecia com prazer tinha desaparecido quase por completo. Se consigo meter este, pensou, mais facilmente meterei o óvulo, que é mais pequeno… Tomou uma decisão: no dia seguinte, antes de sair para a aula de dança do ventre, introduziu na vagina o óvulo de controlo remoto. Entregou o controlo a Ana e pediu-lhe que carregasse algumas vezes no botão, o mais possível de surpresa, enquanto a lição durasse [ ... ].

– Quando é que chega o homem do gado? – perguntou Ana depois da aula.

– O quê? – disse Teresa.

– Poça! Gado rachado, como nós as duas. O americano que marca gado rachado.

Teresa não pôde deixar de se rir da formulação escolhida por Ana.

– Chega amanhã de manhã, via Newark. Vai o Raul buscá-lo com o Avvocato.

– O Avvocato está cá? Gostava de o conhecer.

– Chega logo à noite, com a Chiara.

– E tu, estás preparada?

– Quem é que pode dizer que está preparado para uma coisa destas? – disse Teresa. – Claro que não estou preparada: estou aterrorizada. Mas o que manda não é o meu terror, é a minha vontade.

– A tua? – disse Ana. – Não é a do teu dono?

– A minha vontade subjuga-se à do meu dono [ ... ]; mas se a minha vontade não fosse mais forte que o meu medo, pensas que poderíamos levar isto por diante?

[ ... ].

O americano chamava-se Zebediah Pyke. Vinha de sapatilhas, blusão e boné de baseball; só o rosto, talhado a machado, e a pele curtida, faziam lembrar [um cowboy]. Trazia uma quantidade enorme de bagagem, muito mais do que seria de esperar para uma estadia de quatro dias. Reconheceu imediatamente Manfredi e saudou-o com um “Hi, Orrie” que deixou o Avvocato imperturbável.

– Hi, Zeb – respondeu. – This is Raul Morgado. Raul, o Zeb chama-me Orrie porque o meu nome próprio é Orazio.

Isto era novidade para Raul, que simpatizou com o à-vontade de Zeb.

– Hi, Raul – disse o americano, pronunciando “Rol”; e apertou-lhe a mão com firmeza.

[ ... ].

No apartamento, passaram à conversa séria. Primeiro: sabia Teresa o que estava planeado e no que consistia? Então que o descrevesse pelas suas próprias palavras. Consentia nesse procedimento? Consentia em que a marca lhe fosse aplicada por Raul, apesar de aconselhada em contrário? Sabia que o processo era extremamente doloroso? Teresa respondeu que sim a tudo, e Zeb pediu-lhe que assinasse um documento nesse sentido. Quanto a Raul, Zeb tinha sido informado que ele se reservava o direito de abortar o procedimento até ao último minuto; mas, caso o fizesse, teria que o pagar na mesma por inteiro. Estava de acordo? Raul respondeu que sim. Zeb faria todos os esforços para que Raul adquirisse a competência necessária para marcar a sua escrava; mas se no fim não o considerasse competente, marcá-la-ia ele próprio, ou sairia sem se responsabilizar pelo que acontecesse a seguir. Estava Raul também de acordo com isto?

Raul pediu um momento para falar a sós com Teresa e retirou-se com ela para o escritório [ ... ]. Quando regressaram à sala, Raul perguntou se podia ver a marca de Chiara.

– Mostra – disse Manfredi à mulher.

A Dottoressa Chiara Manfredi era uma senhora elegante de meia-idade, com o cabelo louro cortado à pajem, deixando a nuca a descoberto; naquele dia, trazia blusa de seda, saia pelo joelho, um pouco travada, e sapatos rasos: era em tudo uma profissional discreta, uma académica respeitada. Sem hesitar nem perder o aprumo, desapertou um fecho ao lado da saia e tirou-a pelos pés, desvendando umas calcinhas brancas rendadas. Quando as baixou, Teresa compreendeu porque nunca lhe tinha visto a marca: eram apenas duas pequenas iniciais, OM, em estilo cursivo e sem bordadura. Estavam inscritas na púbis depilada, onde qualquer biquíni reduzido as esconderia. Era uma marca bonita, um pouco em relevo e apenas mais rosada do que a pele em redor; e o lugar em que estava gravada também era bonito: um monte-de-vénus mais saliente e rechonchudo do que a magreza de Chiara faria prever.

A um sinal de Manfredi, Chiara vestiu-se de novo. Zeb perguntou se podia ver o ferro [ ... ]. Ainda bem que a elipse era aberta nas pontas e que o arco do R era também aberto. Isto reduzia o risco de que a pele não queimada viesse agarrada quando o ferro fosse retirado [ ... ]. O tamanho da marca limitava os lugares onde podia ser aplicada: com dez centímetros de largura e sete de altura, teria que ser nas nádegas. O melhor lugar seria a parte de cima, um pouco abaixo dos rins, mas este não era um lugar discreto: seria visível quando Teresa usasse um biquíni ou qualquer peça de roupa muito decotada atrás.

– Não me importa a discrição – respondeu Raul. – Uma marca é para se ver. Vamos marcá-la aí.

[ ... ].

Para essa tarde, Zeb ia necessitar de um espaço onde se pudesse acender um fogareiro. Depois de verificar que o apartamento de Raul dispunha de um terraço adequado no último andar, quis saber se o mesmo existia no lugar onde ele pensava marcar Teresa. Raul telefonou à Baronesa e ela assegurou-lhe que o Justine dispunha dum pequeno espaço nas traseiras e de um fogareiro. A questão seguinte, disse Zeb, era onde amarrar Teresa: teria que ficar perfeitamente firme e imóvel [ ... ]. Raul levou-o ao quarto dos castigos e mostrou-lhe o móvel que mandara fazer: uma mesa de comprimento igual à altura de Teresa e largura igual à das suas ancas, com aros de latão a toda a volta e uma ranhura funda na espessura do tampo. Tal como as outras peças de mobiliário, estava aparafusada ao chão. Milena foi despachada para comprar a fita de embalagem autocolante que era necessária para a primeira lição de Raul: como prender a sua escrava de modo a que ficasse perfeitamente imóvel. Enquanto esperavam, Teresa, meio perdida num nevoeiro de apreensão, só prestou atenção a Chiara, quando esta contou como tinha sido marcada. Tinha sido num rancho perto de Houston. Tinham-na levado para um telheiro e amarrado a uma banca de barriga para cima. Zeb interrompeu para dizer que essa era a sua posição preferida para marcar a fogo uma mulher, porque era aquela em que era mais fácil e mais rápido prestar-lhe os primeiros cuidados depois de a marcar. Orazio, continuou Chiara, decidira vendar-lhe os olhos. Depois tinha-se sentado junto dela, falando-lhe baixinho ao ouvido, chamando-lhe nomes ternos, fazendo-lhe perguntas sobre recordações passadas. Chiara não conseguia deixar de pensar no ferro em brasa, mas, quando Manfredi insistia nas perguntas, tinha que fazer um esforço para lhe responder: só isto a tinha impedido de se entregar ao pânico. A dor tinha sido a pior que jamais sofrera, mas tinha passado; e a marca era tão bonita, não era? Teresa reconhecia vagamente que a marca era bonita; mas aquela dor terrível, que já tinha passado para Chiara, estava ainda seu no futuro [ ... ]. Não duvidava, nem da sua coragem, nem da de Raul. Chegado o momento, tinha a certeza que Zeb autorizaria que o seu dono a marcasse pela sua própria mão; acreditava apaixonadamente que o que se ia fazer era o melhor para Raul e para si própria; mas não se podia impedir de ficar ensimesmada como um soldado na trincheira, nas horas que antecedem o ataque.

Quando Milena chegou com a fita autocolante, Zeb pediu-lhe que começasse a preparar o braseiro, tarefa esta em que Chiara se propôs ajudar. A Raul, a Teresa e ao Avvocato, pediu que o seguissem até ao quarto dos castigos e levassem o ferro. Pediu ainda a Teresa que se despisse e se deitasse na banca de barriga para baixo com as pernas um pouco afastadas. Para o que iam fazer a seguir, não era preciso amarrá-la, mas esta era a posição em que tudo ia acontecer. Antes de mais nada, Raul tinha que aprender a pegar no ferrol: os dedos firmemente à volta do cabo de madeira, segurando-o virado para baixo. Raul pôs-se do lado em que queria marcar Teresa, que era o esquerdo, e segurou o ferro por cima dela com a haste em posição vertical. Não, disse Zeb: o ferro tem que ficar perpendicular à pele e não ao tampo da mesa. Raul que reparasse: ali, onde ele queria a marca, o corpo dela tinha um declive.

Raul aproximou o ferro da nádega de Teresa, mas Zeb disse que era demasiado perto. Se parasse o ferro ali, Teresa sofreria inutilmente, porque sentiria a queimadura com antecedência. Devia pôr o ferro em posição um pouco acima, aí a quatro polegadas. Quatro polegadas era o quê? Dez centímetros? Raul tentou executar à letra as instruções de Zeb, que não pareceu insatisfeito com o primeiro resultado. Manfredi, que os estava a observar, reparou que o americano estava tão atento às expressões e à linguagem corporal de Raul como ao seu desempenho. Está à procura de sinais de nervosismo excessivo, pensou. Mas em parte estava enganado: Zeb estava também atento a sinais de nervosismo insuficiente. Se os notasse em Raul, abortaria o processo da mesma maneira que o abortaria por nervosismo a mais.

Depois de treinar duas ou três vezes o posicionamento inicial, era altura de treinar o contacto entre o ferro e a carne. Primeiro o movimento, que tinha que ser rápido, preciso, uniforme e em linha recta. Depois a pressão adequada: firme, mas não exagerada. Não, assim não chegava. Não, assim era demais. Assim estava bem, podia repetir. Depois, a duração: três segundos no mínimo, no máximo cinco.

– E como é que decido entre três e cinco? – perguntou Raul.

– Good question – respondeu Zeb. – Viu a marca de Chiara? Quando a fiz, mantive o contacto por três segundos. Se quer que a sua escrava fique com uma marca mais nítida e mais escura, deve manter o contacto por quatro ou cinco segundos; but let me have another look at the iron.

Revirou o ferro nas mãos, medindo com os olhos todos os espaços entre as linhas, e concluiu:

– Quatro segundos é melhor. Com cinco, podíamos ter problemas ao retirar o ferro.

[ ... ].

Quando Zeb se deu por satisfeito, passou à lição seguinte: como amarrar Teresa. O objectivo, explicou, era segurá-la de modo a que lhe fosse de todo impossível mover as nádegas, mas de modo também a que fosse possível libertá-la instantaneamente em caso de necessidade.

– E de onde pode provir essa necessidade? – perguntou Raul.

A necessidade podia provir de Teresa entrar em estado de choque. Se isto acontecesse, seria preciso prestar-lhe os primeiros socorros adequados. Se estes não resultassem, o que era muito improvável, seria preciso prestar-lhe os cuidados médicos que ele, Dr. Zebediah Pyke, diplomado pela Harvard Medical School, e membro da American Medical Association, estava habilitado e equipado para prestar.

– Equipado? – perguntou Raul. – Quer dizer que tem medicamentos nessa maleta?

– Medicamentos e outras coisas, tudo documentado de modo a passar na alfândega na mais absoluta legalidade. Don’t worry.

– Mas se a Teresa entrar em choque…

– Não vou entrar em estado de choque nenhum – disse Teresa, com tão absoluta segurança que ninguém ousou acrescentar uma palavra a este pronunciamento.

– Continuemos – disse Raul por fim.

Zeb ordenou que Teresa mantivesse os braços cruzados a fazer de almofada. Nesta posição, atou-lhe os antebraços um ao outro com duas voltas de corda rematadas por um simples laço. Usou os mesmos laços de puxar pela ponta para lhe prender os cotovelos e os pulsos a dois aros de latão. Qualquer pessoa poderia desamarrar Teresa em segundos, ou ela própria em minutos. Raul e Manfredi acharam este sistema demasiado frágil para imobilizar completamente uma pessoa, mas não disseram nada. Zeb explicou que nesta fase não lhe interessava a imobilidade completa de Teresa, mas sim definir a sua posição: o importante era que os nós pudessem ser desfeitos instantaneamente.

– Não vou mesmo entrar em estado de choque – disse Teresa.

Raul e o Avvocato, que a conheciam, começaram a acreditar nela, mas Zeb prosseguiu como se ela não tivesse falado. Atou-lhe os tornozelos com a mesma desenvoltura com que lhe tinha atado os pulsos; bastaria que ela se debatesse um pouco para ficar livre. Atou-lhe a parte superior de cada coxa ao aro de latão mais próximo, e depois a parte inferior, junto ao joelho.

– Fourteen granny knots – disse Zeb, como que falando consigo mesmo – Catorze lacinhos. Conte-os você mesmo, Orrie. Quantos são?

Orazio Manfredi obedeceu conscienciosamente e concluiu:

– They’re fourteen alright, Zeb.

– Very well – disse o Dr. Zebediah Pyke. – Se eu der a ordem de desatar, não pense noutra coisa que não seja em desatá-los, e depressa. Comece pelos braços. OK?

– That’s OK, Zeb.

O que verdadeiramente ia segurar Teresa era a fita adesiva. Zeb começou por lhe prender a cintura, dando várias voltas por cima e por baixo da banca. Depois prendeu-lhe a pélvis, as coxas e os ombros, por baixo dos braços. Quando Zeb lhe mostrou o X-acto que tinha pousado na banca, Raul compreendeu que as ranhuras no rebordo eram para que a fita ficasse em falso e fosse possível cortá-la num segundo. Com Teresa assim amarrada, Zeb quis que Raul repetisse o treino com o ferro.

– Sente a diferença? – perguntou.

Raul sentia uma diferença, com efeito. A inclinação da pele era agora ligeiramente diferente. Também a consistência da carne, assim amarrada, era outra: era preciso um pouco mais de força.

O treino da manhã terminou assim. Milena serviu o almoço. Zeb levantou-se algumas vezes para ir ao pátio ver como estava a progredir o braseiro, juntando-lhe eventualmente mais um pouco de carvão. O aço é um mau condutor do calor, o que significa que é difícil aquecer a zona de queima até uma temperatura uniforme. Zeb rejeitou a sugestão de aquecer o ferro nos bicos de gás: umas partes ficariam quentes demais enquanto outras não o ficariam o suficiente. O melhor processo era o braseiro: introduzir a zona de queima no meio das brasas, deixar de fora a maior parte da haste, virar o ferro periodicamente e esperar até que a zona de queima apresentasse uma cor entre o cinzento escuro e o vermelho. Enquanto o ferro aquecia, trouxe para o quarto dos castigos umas almofadas em cabedal muito fino.

– Tome o peso a isto – pediu ele a Raul, passando-lhe para as mãos uma delas.

– É pesada – disse Raul.

Era pesada porque estava cheia de silicone de modo a imitar a consistência do corpo humano. De cada vez que Zeb treinava alguém, destruía várias destas almofadas, e esta era uma das razões por que os seus serviços eram tão caros.

– Estou a ver – disse Raul.

Zeb pediu-lhe que fosse buscar o ferro que estava a aquecer no pátio; Raul que não se apressasse: durante o percurso, o ferro quase não perderia calor. Entretanto prendeu uma almofada à banca e, quando Raul regressou, disse-lhe:

– Here’s your female. Agora marque-a.

Raul fez tudo errado. Não pôs o ferro na posição correcta nem à distância certa, aproximou-o numa linha irregular, que tentou corrigir tarde demais; suou, a mão tremeu-lhe, e ao fim dos quatro segundos retirou o ferro com um movimento hesitante, como que a medo.

– I’ve seen worse – foi o único comentário de Zeb.

Mas a Raul pareceu-lhe que era impossível pior: a marca que tinha deixado na almofada era uma coisa feia e informe. A ideia de que Teresa pudesse passar o resto da vida com semelhante deformidade no corpo punha-o doente. Enquanto o ferro voltava a aquecer, passou em revista os seus erros. Na almofada havia ainda espaço para mais duas ou três tentativas: a segunda resultou muito melhor do que a primeira, mas ainda assim Zeb teve um defeito a apontar:

– Está a ver aqui a linha indistinta? É onde a sua mão tremeu durante o contacto. Terá que fazer muito melhor para eu o deixar aproximar-se duma mulher a sério.

Quando Raul conseguiu dez marcas perfeitas seguidas, Zeb deu o dia por concluído e explicou-lhe como se limpava o ferro [ ... ].

Nessa noite, Raul parecia sentir uma fascinação especial pelas nádegas de Teresa e ela pelas mãos dele, que beijou mais vezes nessa noite do que habitualmente numa semana. Depois de se terem abraçado e beijado longamente, e quando Teresa, já toda aberta e molhada, se preparava para receber na vagina o seu senhor, ouviu-o dizer:

– Dá-me o teu cuzinho, escrava…

Com um gemido que era ao mesmo tempo de ansiedade e frustração, Teresa procurou na mesinha de cabeceira o frasco de gel. Ela própria lubrificou o pénis do dono, mas, quando lhe ofereceu o frasco, ele recusou, dizendo:

– Faz tu, escrava.

Guiando-se só pelo tacto, Teresa aplicou o gel no seu próprio ânus, tendo o cuidado de não se atrapalhar com a pressa: se ficasse mal lubrificada, seria ela a sofrer. A penetração foi dolorosa, como ela esperava, e Raul não lhe acariciou o sexo enquanto a possuía por trás; e contudo, pela primeira vez na vida, sentiu nesta penetração prazer suficiente para a levar a um orgasmo.

– Meu senhor, posso vir-me?

Raul, um pouco surpreendido, autorizou-lhe o clímax e, quando lhe sentiu os primeiros espasmos, esvaiu-se também dentro dela.

O dia seguinte começou com várias repetições do amarrar e desamarrar de Teresa. Durante a tarde, Raul treinou com o ferro quente, destruindo mais umas tantas almofadas de silicone. As marcas saíram todas perfeitas, apesar de Raul continuar a dar alguns sinais de nervosismo. Agora que tivera tempo para pensar, o Avvocato entendia porque é que Zeb preferia um Raul ligeiramente nervoso a um Raul perfeitamente calmo: é que na hora da verdade não estaria calmo de certeza, e apesar dos nervos teria que fazer bem o seu trabalho. Ao fim da tarde, Zeb deu-se por satisfeito: declarou que ia aproveitar a manhã do dia seguinte para conhecer um pouco o Porto e despediu-se. Às seis da tarde de sábado, alguém o iria buscar para o levar ao Justine, onde daria a Raul um ligeiro treino final antes da cerimónia, que teria lugar às nove e meia. Estariam presentes, como testemunhas: bondarina e o seu Dono; a Baronesa e o seu submisso; kathy e o seu Dono; Ana e Miguel; a professora de dança do ventre de Teresa – que esta, num impulso de última hora, se atrevera a convidar, e que, para sua surpresa, aceitara; Orazio e Chiara Manfredi; e Carolina, que adivinhara que algo do género estava para acontecer e pedira para assistir.

No sábado, a seguir ao almoço, Igor apresentou-se em casa de Raul, acompanhado pelo submisso da Baronesa, para ajudarem a desaparafusar a banca e a pô-la na carrinha alugada. O submisso da Baronesa, apesar do seu aspecto frágil, e o Avvocato, apesar da idade, ajudaram; e pouco depois a banca estava no Justine, aparafusada ao chão no lugar que ocuparia de futuro.

Enquanto Zeb e os convidados não chegavam, Teresa foi o centro das atenções. Igor, bondarina, a Baronesa, Raul, todos a rodeavam e mimavam, arrancando-lhe um débil sorriso ou uma curta frase. Às seis, chegaram o Avvocato e Chiara trazendo Zeb. Às nove, prepararam-se para a chegada dos convidados: competiria a Teresa recebê-los e a cumprimentá-los à porta, toda nua por baixo duma capa comprida, segura no pescoço só por um botão. Às nove e meia, o braseiro, no pátio, estava aceso; e o ferro de marcar gado estava à temperatura certa. Zeb, ao chegar, disse que era seu dever perguntar a Raul se queria Teresa anestesiada. Teresa, muito pálida, acenou que não com a cabeça, e Raul recusou a oferta. Zeb perguntou se podia, nesse caso, dar-lhe um sedativo que não a poria a dormir mas lhe reduziria o medo. Teresa voltou a acenar que não, mas desta vez Raul aceitou. A Baronesa pôs música a tocar – Canto Gregoriano – e os convidados sentaram-se. Teresa dirigiu-se para junto da banca, tirou a capa, que entregou a Chiara, ajoelhou-se nua aos pés de Raul para lhe beijar as mãos e os pés, e ergueu-se de novo. Na sala, ninguém falava. Do outro lado da banca, estava Zeb, e junto ao topo o Avvocato: Teresa fez uma vénia a cada um e disse-lhes “obrigada por tudo” em voz sumida. Depois deitou-se de bruços na banca, onde os três a amarraram e amordaçaram. Zeb procurou-lhe uma veia nas costas da mão. Teresa sentiu a picada e logo depois sentiu-se relaxar: dava-se conta de tudo, mas tudo parecia muito longe.

Os dados estão lançados, pensou Raul. Rien ne va plus.

Chiara dirigiu-se ao pátio, de onde voltou para anunciar que o ferro estava pronto. Teresa não viu o sinal de Zeb: viu Raul sair do seu campo de visão e ouviu-lhe os passos no regresso, rodeando a banca pelo lado oposto. Não viu o ferro, mas imaginou-o, a haste em aço claro, a ponta vermelha-escura. Começou a respirar o mais devagar e o mais profundamente que podia, como lhe ordenava Zeb numa voz calma, quase hipnótica. Sentiu Raul de pé, junto ao seu flanco esquerdo; de onde ele estava, irradiava o calor do ferro, que ela sentia à distância. Esta sensação de calor intensificou-se subitamente: agora era quando ele punha a superfície de queima em posição. Teresa procurava manter a respiração funda e lenta que Zeb lhe prescrevera, quando de repente a trespassou uma dor imensa que lhe fez perder a vista, que lhe endoidou a vista e a fez ver a sala toda branca, como se a luz de mil sóis a tivesse inundado. Ouviu, muito ao longe, a voz de Raul, que contava até quatro. Não sentiu a retirada do ferro, nem reparou quando Zeb lhe levantou as pálpebras para lhe ver os olhos. Antes de a desamarrarem, puseram-lhe um penso. A dor abrandou. Depois sentiu a picada duma injecção na outra nádega: é para a dor, disse Zeb. Passado um bocado, a dor abrandou mais um pouco.

– Perfect – disse Zeb.

Se alguém viu Teresa sorrir um pouco neste momento, por certo não acreditou nos seus olhos. Mas ela sorriu porque tinha um segredo: Raul tinha passado o teste a que ela o sujeitara. E ela própria também. O que era uma queimadura, por dolorosa que fosse, comparada com isto? Mas a dor ainda era intensa. Teresa descobriu que, se voltasse a respirar fundo e lentamente, a dor se tornava mais fácil de suportar. Começou a tomar uma consciência mais nítida das coisas. Alguém a beijou no rosto: era Chiara. Depois Raul, muito pálido:

– Estás bem?

Teresa tentou um sorriso:

– Estou bem.

[ ... ]

– Amo-te muito, minha escrava – disse Raul.

Teresa sentiu o coração a bater com mais força, e Zeb, que lhe tomava o pulso e olhava para o relógio, sorriu levemente.

– Amo-te tanto, meu dono!

E todos a devem ter ouvido, porque o ambiente da sala mudou: estava agora mais enfeitado de sorrisos, como se todos os presentes partilhassem um triunfo.

– Vamos sentá-la – disse Zeb.

Com várias mãos a ajudá-la, Teresa sentou-se na banca onde tinha sido marcada.

– Põe a cabeça entre os joelhos e respira fundo.

Passado um bocado, perguntaram-lhe se conseguia levantar-se e ela fez que sim com a cabeça. Lentamente, conduziram-na para uma cadeira onde a sentaram, ainda nua, e lhe lançaram uma manta por cima.

– É preciso vesti-la – disse alguém.

– Give her time – respondeu Zeb. – Daqui a pouco, ela própria vai conseguir vestir-se.

Mediu-lhe a tensão arterial, os batimentos cardíacos e a temperatura: estava tudo normal. Teresa olhou à sua volta: onde estava Carolina? Viu-a de pé, pálida, a suar e agarrada às costas de um sofá para não cair.

– A minha irmã não está bem, ajudem-na.

Em dois passos rápidos, Zeb pôs-se junto de Carolina, sentou-a e agachou-se para lhe ver os olhos.

– Can you see me? Who am I? – perguntou.

– Zeb – disse Carolina.

Zebediah notou como a respiração se normalizava e como a cor lhe voltava ao rosto.

– Tragam-lhe um pouco de água – ordenou.

Depois fez-lhe os mesmos exames que fizera a Teresa.

– She’s gonna be alright – concluiu.

Quando Teresa se sentiu melhor, pediu a bondarina que a ajudasse a vestir-se e que a trouxesse depois para junto da irmã.

– Deixem-nos um momento sozinhas – pediu.

Do outro extremo da sala não se podia ouvir o que estavam a dizer; mas, pelos gestos e expressões, a conversa pareceu dividir-se em várias fases: primeiro, Carolina pegou na mão de Teresa; depois pareceram zangadas; a seguir foi Teresa a pegar na mão de Carolina; por fim abraçaram-se, e Carolina desatou num choro desabalado que só pouco a pouco, sob os beijos da irmã, foi acalmando. Por fim, à hora de abrir o clube e deixar entrar os clientes, estavam as duas numa conversa amena: igual, para quem visse, a qualquer outra conversa entre duas irmãs que se dão bem.

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